quinta-feira, 9 de setembro de 2010

ROCK PAI POP FILHO - ZECA BALEIRO

Falei de música esses tempos. Agora, postarei um artigo do grande Zeca Baleiro, compositor bem brasileiro que, a primeira vista, tem a mesma opinião que eu (ou nós).




Segue o artigo publicado na revista ISTOÉ Independente, http://www.istoe.com.br/colunas-e-blogs/colunista/4_ZECA+BALEIRO, sem data.



ROCK PAI POP FILHO

Por Zeca Baleiro

Foi o rock que arrombou a porta e por essa picada aberta agora desfila um teatro de horrores sem estofo e a serviço de uma triste ideologia

O rock surge na década de 50, depois da Segunda Guerra, em meio à desolação do mundo e à necessidade de recriá-lo. O rock vem com a força de um furacão e mexe de forma definitiva no comportamento das pessoas e com a indústria cultural como nunca dantes visto. É transgressor, subversivo, questionador, abusado, rompe com valores estabelecidos, afronta a caretice vigente. A eclosão do rock coincide com o surgimento da televisão e é a pedra filosofal do que se conhecerá adiante como cultura pop.

Chego então aos tempos de hoje. Para constatar como a cultura pop, criada a partir do advento do rock’n’roll, foi-se diluindo, diluindo até chegar a um ponto que equivale à sua própria negação. “O que ontem era novo, hoje é antigo”, já atestava o poeta Belchior nos anos 70. Seu verso poderia ­derivar para “o que era transgressor hoje é careta”, tamanha a inversão de valores que há no mundo atualmente.

Pois o “Big Brother” e todos os sórdidos reality shows que infestam a tela da tevê, a publicidade cínica vestida de rebeldia cosmética, o circo do show biz e seu ridículo manual de atitudes, a pândega vale-tudo dos programas de humor, o rock programático e meloso das bandas emo, tudo que existe de mais acintosamente anti-rock’n’roll no mundo hoje é, por incrível que pareça, cria do rock. Foi o rock que arrombou a porta e por essa picada aberta agora desfila um teatro de horrores sem estofo e a serviço de uma triste ideologia: o benefício próprio, o enriquecimento fácil, o culto à fama mais que ao trabalho, a desmoralização de toda e qualquer virtude, o desprezo pelo passado e pela memória e o hedonismo mais perverso e sem charme de todas as eras. Se o rock lutava contra o estado de coisas do seu tempo, seus herdeiros lutam para manter as coisas como estão.

Caos x cosmo
Os místicos creem que após todo caos surge um cosmo, como os historiadores sabem que após toda idade de trevas surge uma nova era luminosa. Nunca porém o mundo ­esteve envolto nesta névoa de instantaneidade e fugacidade que a tecnologia digital nos trouxe. Em nenhuma outra ­época a ditadura do presente e a conectividade foram tão valorizadas como agora, por um motivo talvez banal: há ­ferramentas para isso. “Se há ferramentas, por que não ­usá-las?” – perguntam-se todos.

Conheço umas três ou quatro pessoas que optaram por não ter celular. Engana-se quem pensa que vivem no mato, como ermitões em busca da paz e da sabedoria perdidas. Não, são pessoas urbanas, ativas e ligadas à comunicação. Não têm celular para não perderem outra conexão, mais cara a elas: a conexão consigo próprias.

O mundo hoje é pura evasão. Não à toa, há um boom ­notável no turismo internacional. A arte aspira ser só entretenimento. E a informação transformada em espetáculo. Mesmo territórios quase sagrados, como a literatura, agora vivem no fio da navalha. Recentemente foi publicada bombástica notícia. Dois adolescentes adaptaram clássicos da literatura universal para o Twitter. Ou seja, transformaram a literatura no oposto do que ela pretende ser. O que era fruição lenta, reflexiva, prazerosa e gratuita, agora é expressa, rasa e a serviço da performance, do tipo “ganha quem ler mais!”...

O mundo futuro será alimentado de informações segundo a segundo. Eventos interativos a todo instante. Tudo dividido entre todos os mortais. Menos o dinheiro, o afeto e o respeito.

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