quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Sinal da Cruz

Sabendo que a polícia está aquartelada, José espera sozinho na parada escura, sob o frio intenso da noite, com um temor tenso de exício na espinha. José sente um calafrio, se benze e faz o sinal pro seu ônibus que tá chegando parar. Entra e percebe a preocupação compartilhada pelos passageiros no momento em que embarca. Todos o acompanham sentar no único lugar vago, ao lado do cobrador. Qualquer um é um suspeito.

A longa jornada segue como todos os dias. É comum o burburinho das pessoas nesse horário, o descarrego exausto na alegria do fim de um dia de trabalho. Porém, hoje José repara que paira um silêncio absoluto, quebrado apenas algumas vezes pelo som da frenagem ou o sinal solicitando o desembarque. O medo se acumula nos músculos cansados dos corpos. Os comentários, relatos e as notícias sobre assaltos a ônibus, alguns com tiros e gente morta, se espalharam nas últimas semanas por todo lado.

Cada sinal que alguém aperta indicando que vai descer é um pulo de susto nos mais atentos. José olha para o lado direito, vê passar fora da janela uma igreja e faz o sinal da cruz ao mesmo tempo em que vê pelo reflexo a arma em punho do passageiro de trás que levanta anunciando o assalto e causa em José uma reação espontânea: ao levantar a mão ainda em prece ele bate na arma do assaltante, disparando acidentalmente um tiro no seu próprio peito. Caído ao chão, no átimo de vida que se extingue em um amém, José olha para o teto do ônibus e pergunta: por quê?

terça-feira, 7 de julho de 2015

O Sorriso de Dona Margot

Nunca a viram tão feliz.

Quem a conhece não pode reconhecer.

Quem não a conhece se admira com tanta felicidade.

Passeia alegre pelo centro da cidade com uma criança nos braços.

Quem vê Dona Margot assim tão tranquila não pode imaginar que ela acabou de roubar um bebê.

quarta-feira, 1 de julho de 2015

Músicas para (re)pensar a redução da maioridade penal

Ser a favor da redução da maioridade penal é fácil. Difícil é ver que não é uma solução viável: não reduz criminalidade entre menores infratores, não previne crimes pelo “medo da punição”, nem tem qualquer resultado prático. É só uma forma de constituir capital político dos mesmos conservadores de sempre, já que a “maioria da população” é a favor da medida. 

O assunto já tá bem batido nos últimos tempos. No Google se encontra muita coisa sobre o assunto, tanto pra se posicionar a favor (muitos poucos argumentos válidos) quanto pra formar posição contra a política de segurança pública da redução da maioridade penal.

Abaixo, então, listo algumas músicas que conheço e que falam sobre o tema da desigualdade social e de como a solução está na raiz do problema, e não nos seus sintomas, e que nos fazem (re)pensar a questão de menores infratores.


Pivete - Chico Buarque
“No sinal fechado ele transa chiclete. E se chama pivete. E pinta na janela. Capricha na flanela. Descola uma bereta. Batalha na sarjeta E tem as pernas tortas”.




Brejo da Cruz - Chico Buarque
“A novidade que tem no Brejo da Cruz é a criançada se alimentar de luz. Alucinados. Meninos ficando azuis. E desencarnando, lá no Brejo da Cruz, Eletrizados cruzam os céus do Brasil. Na rodoviária assumem formas mil. Uns vendem fumo. Tem uns que viram Jesus”




O Meu Guri - Chico Buarque
“Chega suado e veloz do batente. Traz sempre um presente pra me encabular. Tanta corrente de ouro, seu moço, que haja pescoço pra enfiar. Me trouxe uma bolsa já com tudo dentro: chave, caderneta, terço e patuá, um lenço e uma penca de documentos. Pra finalmente eu me identificar: Olha aí! Olha aí! Ai, o meu guri, olha aí! Olha aí! É o meu guri e ele chega!”




Problema Social – Seu Jorge
“Mataria a minha fome sem ter que roubar ninguém
Juro que eu não conhecia a famosa Funabem
Onde foi a minha morada desde os tempos de neném
É ruim acordar de madrugada pra vender bala no trem”.




Abismo Das Almas Perdidas - Facção Central
 “A mosca que se alimenta de mortos voa de jato,
sua proteína tá no sangue do menino soldado”.



  
Maioridade penal - Nelson Maca
“Não viu o branco do arroz, não sabe o que é feijão
Na rua a cama é jornal, de papelão o cobertor
O brinquedo não chegou, com o lápis se desapontou
Primeiro água no chafariz, o fogo na pedra vem depois
Pai e mãe nunca viu, mamou nas tetas do terror
Cresceu nos braços da solidão, abraçado ao desamor”.




Rap Contra Redução da Maioridade Penal - Thiago Peixoto - Capella
“Nós criamos esse inimigo negando-lhes passado, presente e futuro digno. Demos o mínimo do mínimo quando muito, pão e abrigo, e ao invés de reparação, pensamos em mais um castigo?”




Racionais Mc's - A Vida é Desafio
"Tem que acreditar. Desde cedo a mãe da gente fala assim: 'Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.'
Aí passado alguns anos eu pensei: Como fazer duas vezes melhor, se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como?”


segunda-feira, 18 de maio de 2015

Usuário Craque - Sobre Dependência Química e Conflitos Éticos

Li um comentário antigo nesse blog que me fez lembrar duma vez eu criei um outro blog que tratava da questão dos dependentes químicos.

Era como se fosse um diário de um adicto em crack que vivia na rua. O projeto era migrar pra um livro, talvez. Eu era bem mais pretensioso que hoje. No rodapé da página havia um aviso claro de que era ficção, e que a história era uma forma de dar visibilidade a um problema tão presente e tão negligenciado, humanizar os dependentes químicos e mostrar como é em parte a vida nas ruas. Criei um passado de misérias e tragédias pro personagem, mostrando um pouco sobre como pessoas podem buscar fuga pela droga. Criei até o que hoje poderia ser uma hashtag: finalizava as postagens sempre com "TAMUJUNTO". A linguagem do personagem tinha que ser o mais próximo possível de alguém que vivia em condição de rua, na periferia, com gírias e erros ortográficos. Pesquisei sobre os assuntos relacionados, sobre como é essa vida, e até criei um post no blog oficial sobre como exigir do Estado o tratamento pra dependência (Aqui: Conheca seus direitos II)

O blog estourou sem eu fazer muita força. Divulguei pouco, mas logo já tinha quase mil visualizações por dia. Isso em 2009!

Foi aí que eu comecei a receber diariamente e-mails de gente que estava envolvida com minha história, contando seus relatos pessoais, desejando melhoras pro meu personagem. Eu fazia questão de deixar claro pras pessoas que me mandavam seus relatos que trava-se de uma crônica, não de algo propriamente real. Nenhuma me recriminou pelo que eu estava fazendo, algumas até me agradeceram. 

No fim, eram tantos os relatos, tantos e-mails com exemplos e pessoas desejando que meu personagem tivesse força contra o vício que eu entrei num conflito ético. Ao invés de matar meu personagem, consegui pra ele uma internação e ele iria ficar sem contato com o mundo externo por nove meses. Nesse tempo, esperei que os meus leitores tivessem sucesso na luta contra o vício do seus familiares e amigos. No fim, acho que ajudei algumas pessoas, que perceberam o adicto como um ser humano, com problemas e vontades, e sempre citava os nomes dos dependentes sobre os quais eu era informado.

Os comentários do último post me deixaram bem emocionado. Foi o post em que um outro eu, dono da lan house onde o "usuáriocrack" postava no seu blog, depois de nove meses, relatava que a internação teve sucesso e que o blogueiro tinha enfim arranjado um emprego e estava terminando o segundo grau.

Foi em parte bom, apesar de "lucrar" com um problema real (nunca ganhei nada, só uma pequena notoriedade do blog), me ajudou bastante a entender o mundo das pessoas que lutam contra o preconceito em torno dos adictos e contra o vício, seu ou de pessoas próximas.

Aí percebi que #tamojunto, independente de estarmos ou não dentro de uma situação de luta como essa.