terça-feira, 8 de novembro de 2011

O Homem que Escrevia no Espírito (Parte 1)


Por Rafael Rivas



Vinícius era um homem apaixonado. Gostava de relacionamentos longos, conhecer e aprender de sua amada. Observava com afinco os gestos, a postura, a maneira de andar. Esforçava-se para se apaixonar sempre pela mesma mulher. Resignava-se fácil, não gostava de tolices.

Estava namorando há sete anos a mulher que lhe rendeu um noivado. Dedicava-se como se aquela fosse a última, a beijava como se fosse a única. Romântico que era, dava flores inesperadas, surpreendia com presentes fora de data, comentava os cortes de cabelo – ainda que fossem apenas nas pontas -, elogiava constantemente as roupas, sapatos, ligava para dizer um eu te amo, mandava mensagens agradecendo pela oportunidade de ser feliz ao lado dela. Quando ia trabalhar, deixava no quarto dela poesias de amor e sexo que improvisava em post-its, e partia vendo ela agarrada aos lençóis, como se fizesse parte de uma pintura, na qual a cama era a moldura.

Entretanto, ela sempre foi pouco habituada aquele amor todo. Desdenhava no início, mas veio a se acostumar com o noivo meloso com passar dos anos. Achava brega, antiquado, um tanto obsceno. Não era dada a palavras eróticas. Tinha personalidade recatada, negligente, um quê de pachorrenta.

Tal espírito desidioso da namorada acabou por aplacar esse ímpeto poético no jovem Vina. Já perdera o tino para improvisos, não escrevia mais nada. Ele foi se desapaixonando aos poucos, mas não só por ela, por si mesmo, pela sua atitude servil. Do noivado sobrou apenas amizade, ou seja, amor sem sexo. E de amizade nenhum homem vive por muito tempo. Sentia cãibras no seu espírito criativo, havia adormecido nele aquele tino para a arte. Vina queria mais, queria se reapaixonar, só que por outra mulher, por si, pela vida. Sentir novamente aquele frio na barriga, se interessar pelos gestos, pelo corpo de outra mulher, voltar às poesias de amor e sexo. Rompeu o noivado estanque e partiu rumo à vida.

Foi então que ele conheceu Carla… e Camila e Joana e Bárbara e Amanda e Vanessa… Vinícius apaixonou-se não só uma vez, mas várias, diversas, por todas, umas diferentes das outras, suas peculiaridades, suas curvas, minúcias, a maneira de andar e quedarem-se sentadas. E nunca estivera tão inspirado a fazer poesias. Não de escrevê-las em post-its ou cartas, mas dizê-las às amadas, sussurrar no pé d’ouvido, em letras garrafais, caligrafias virtuais, tons retumbantes. Sentia o fundo d’alma delas estremecer aos percucientes verbos empregados em suas prosas, às exclamações, às rimas, cada estrofe um gozo. Valia-se de palavras de baixo calão, vulgares, chulas, dignas do funk mais bagaceiro, unidas a palavras rebuscadas, aprimoradas, requintadas, aveludadas por sua voz macia e firme, em literatura pura e métrica. Fazia uma montanha russa de emoções naquelas orelhas atentas. De fato, as palavras polidas eram as que mais faziam efeito, pois elas quase não entendiam, não fosse o contexto.

Passou a deixar de lado as flores e as mensagens e as ligações e os comentários sobre os cabelos e os vestidos, pois elas o procuravam apenas para que ele falasse aos seus ouvidos as palavras mágicas. Enquanto ele se deliciava em seus corpos, beijando as coxas, as nádegas, as costas, declamava seus famosos versos e prosas, sentindo nos pelos a repercussão das palavras. Deixou papel e caneta, tudo estava em sua cabeça, e era gravado naqueles corpos desde o espírito que ele fazia seu livro. Cada orelha uma página em branco, esperando ser preenchida com aquela retórica persuasiva que lhe vinha de súbito, no improviso. Cada palavra entrava n’alma e nunca mais saía, provocando calafrios mesmo depois de horas, só de lembrança vaga.

E cada vez mais ouvintes lhe procuravam; senhoras, acadêmicas, enfermeiras, putas pagavam para ouvir dele as palavras mais belas e sórdidas. Tornou-se famoso na boemia da cidade, fazendo a diversão dos ouvintes atentos nos bares. Logo ficou conhecido em toda capital, passando a dar entrevistas a jornais e saindo de quando em vez em colunas de suplementos literários. Em um ano já fazia apresentações em programas televisivos, ia a talk-shows, escrevia no espírito das apresentadoras suas poesias. 

Aquela vida pretérita do Vinícius estava tão longe quanto perto o desfecho do seu livro. Nem se lembrava da noiva, que tanto lhe sufocara o espírito criativo. Tinha tantas admiradoras que sequer lembrava-se da mulher da véspera.

Continua em O Homem que Escrevia no Espírito (Parte 2)

sábado, 5 de novembro de 2011

Quando o Virtual se Tornou Real



Por Rafael Rivas

Estava entrando na festa quando a vi, também entrando. Me assustei. Perguntei para mim: será ela? Na verdade, nem sei bem se a vi ou se pensei que via. Minha lembrança a reconhecia, mas meus instintos, meu faro e meu tato ainda não. Olhei de longe, em meio a identidades e comandas, chamados e revistas íntimas, fumaça e New Order rolando no fundo, aqueles negros cabelos cumpridos, o corpo vestindo preto e rapidamente o rosto, que até então só poderia lembrar pelas fotos do Facebook. Ela era irmã de um ex-colega do tempo do primeiro grau, um ano mais nova que nós. Tanto tempo... Será ela?, ecoava no meu pensamento. Tinha estabelecido com ela um superficial contato virtual, pelas redes sociais, dada a proximidade pretérita.

Algumas Devassas depois, já embalado ao som de Boys don’t cry, vi ela passar novamente. É ela!, pensei. Tentei achá-la novamente por entre aquele amontoado de gente. Não deu. Esperei por outro momento. O lugar era pequeno, haveria de encontrá-la novamente.

"Say you, say me", meu álibi tinha ido ao banheiro e, enquanto esperava, vi ela com seu vestido preto e suas amigas entrando no toalete feminino. Pensei: mando ele esperar se voltar antes, mas tiro a dúvida para não perder a noite insone. Raciocinei algumas palavras prontas para dizer caso ela passasse sem me ver. Pegaria ela pelo braço e perguntaria seu nome, o que me daria a deixa de saber se era realmente quem eu imaginava. Ela saiu do banheiro. E foi mais rápida. Veio em minha direção, com olhares de quem já me reconhecera e me deu oi. Três beijos, um olhar apurado, algumas palavras ao pé d’ouvido por causa da música oitentista alta e um “não vai embora”. Confesso que não sei se interpretei bem aquele “não vai embora” ao som de Lionel Richie.

E o pior, teria ela gostado do que viu? Eu teria correspondido ao que ela tinha imaginado pelas fotos do meu perfil do Facebook? Estava mais gordo que nas fotos, diferente do que se lembrava do tempo de escola?

A dúvida pairou e ficou no ar, como um pulo do Dadá Maravilha para cabecear um chuveirinho na entrada da área. Dormirei com a dúvida. Talvez para sempre, pois ela continua off-line.

Que será que ela viu ao me ver? Que será que eu fui para ela naquela noite, ao som dos anos oitenta, numa festa já quase no fim?