segunda-feira, 16 de abril de 2012

Perfume de Pólvora




“Cadê o Geraldo, cadê o Geraldo?”. Escuto meu nome ser proferido aos berros do lado de fora da minha porta, mas não entendo por quê. Levanto e vou até à porta pra ver do que se trata. Abro a porta, saio confuso e sinto algo gelado forçando minha têmpora direita. Minha retina volta o foco, e na minha frente está minha secretária ajoelhada e um homem de capuz preto na cara, que segura uma arma contra a nuca dela. Ainda sem entender o que acontece, olho pra direita pra tentar achar a coisa que incomoda minha cabeça: é outra arma, outro bandido de capuz preto na cabeça. Ele diz "Ajoelha", e minhas pernas obedecem antes da cabeça mandar. "Tu que é o Geraldo?", ele grita, e antes de eu responder, Melissa de súbito aponta pra mim e diz "É ele!", delatando que sou o gerente do banco e o único que pode dar o dinheiro que eles querem.

Tantos anos sendo minha secretária e nunca pensei que ela me trairia desta forma. O verdugo que a mantém genuflexa me olha e diz: "É ele", apertando em seguida o gatilho da arma que estava sobre a cabeça de Melissa: BLAM! O barulho seco do tiro abafado pelo crânio dela deixa o som das vozes abafadas, por alguns segundos só escuto um zunido. A luz intensa que sai do cano da arma deixa minha vista branca e o cheiro do sangue, da carne e da e pólvora me baixam a pressão instantaneamente.

Como cheguei até aqui? Esta é a vida que eu imaginei ter? Eu queria ser bombeiro. Era apaixonado por caminhões de bombeiros e suas sirenes, me imaginava de farda, combatendo o fogo. Sempre que brincava com meus amigos eu era quem salvava as vítimas. Depois pretendi ser médico, salvar pessoas, me tornar pediatra - ou geriatra -, resolveria problemas graves. Abandonei a ideia no segundo semestre da faculdade, mas foi lá que eu conheci meu primeiro e verdadeiro amor, Cíntia. Ela era linda, tão tímida que encantava qualquer um. Fazia enfermagem, só que sonhava mesmo em ser médica, pediatra ou geriatra. Foi aí que me apaixonei, mesmo que desapaixonara da medicina. Acho que permutei as paixões. Saímos algumas vezes até eu perceber que ela também estava apaixonada - apesar de eu ter desperdiçado um sonho que era dela. Comecei a estudar administração, pois ainda estava à deriva e não sabia bem o que iria fazer da vida após ter o sonho interrompido pela desilusão. Comecei estagiando em bancos, e fui aprendendo com meus amigos a praticar pequenos furtos. Me formei, fui efetivado em um grande banco, mas, depois que Cíntia descobriu meus planos de fazer um golpe grande, terminou nosso relacionamento e nunca mais nos vimos. Disse que não me conhecia, que eu não era quem ela pensava ser, um altruísta, filantropo, alguém ético e correto. Eu queria poder, dinheiro, posição, era e sempre fui ambicioso. Ela nunca entenderia, por ser inocente e ingênua demais. Esse é um mundo de Geraldos, não de Cíntias.

Por já ter certa posição no banco e conseguir muito dinheiro desviando aposentadoria de velhinhos, casei com a filha de um influente senador. Ele me promoveu a gerente do setor de empréstimos da maior agência do banco no estado, o que me deu margem para desviar grana grande. Foi uma maneira de o senador dar melhores condições de vida à sua filha, indiretamente. Contudo, apesar de estar feliz com minha vida financeira, nunca fui feliz com minha esposa arranjada. Ela também não deve ter sido, pois foi praticamente forçada a casar-se comigo. Tivemos apenas um filho, que parou de estudar quando foi para uma universidade na Holanda e agora é um drug dealer na zona vermelha. 

Se arrependimento matasse… ou melhor, se arrependimento evitasse que a gente morresse como agora vai acontecer comigo! Eu viveria outra vida. Aliás, eu voltaria a viver a vida antes do primeiro desvio, antes do primeiro golpe, encontraria Cíntia e tentaria mostrar o que estou sentido agora, no momento em que estou para morrer. Diria que sinto novamente meu amor por ela, o quanto estive errado e como minha vida foi de fato da forma como ela prognosticou naquele dia em que nunca mais a vi.

Queria tanto não morrer agora, como Melissa, que foi sumariamente descartada por não ser quem essa gente procurava. É assim que um homem arrependido deve morrer, pelas mãos de assassinos frios que só querem dinheiro?

Recobro minha vista com um tapa na cara, e o sujeito me manda levantar. Querem que eu abra o cofre. Tento dizer que não tenho a chave, mas eles mostram saber mais da minha vida que minha própria esposa. Pego a chave codificada. Há cinco milhões de reais no cofre do banco. Com esse dinheiro eu poderia dar uma vida de rainha pra Cíntia, fazer dela a mulher mais feliz do mundo, pra que ela me fizesse o homem mais realizado. Pagaria sua faculdade de medicina, se ela já não fosse médica, e ela se tornaria geriatra, ou pediatra, e cuidaria de mim quando envelhecêssemos, e teríamos dois filhos com os olhos dela, uma casa de campo na serra, uma poltrona confortável à beira de uma lareira. Mas esse dinheiro agora não poderia mais ser meu, nem do banco, nem dos verdadeiros donos, pois os homens encapuzados (que conto por alto serem cinco, portanto um milhão para cada, o que seria justo, uma vez que assaltam juntos o maior banco do estado, cujo gerente é um dos homens mais sujos do país) agora vão levar sem nenhum esforço. Enfio a chave trêmula, giro e estalo! Trinta e dois pra direita, sessenta e cinco pra esquerda, estalo! Setenta pra direita, vinte e quatro pra esquerda, estalo! Trinta e nove pra direita e, e, e... e qual é a porra da última dezena? Cinquenta e cinco? Cinquenta e seis? "Vai duma vez, caralho. Foda-se, vou explodir essa merda", diz o mais impaciente deles. Ele olha pra mim com raiva, fecha o rosto. Reluz no vidro dos seus olhos um brilho intenso: BLAM! O brilho é do fogo da arma que ele apontava pra mim, e que agora empurra a mão dele contra seu corpo. O barulho da explosão ecoa entre minhas orelhas, e sinto um doce perfume misturado à pólvora e à fumaça: é o cheiro do sangue que me escorre pela face.