quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O Homem que Escrevia no Espírito (Parte 2)



Por Rafael Rivas


Continuação...


Certa feita, entretanto, quando estava em uma recepção em seu flat - dada em sua homenagem por ocasião do lançamento de um DVD, no qual Vinícius demonstrava seus dotes linguísticos para uma plateia de mulheres que se derretiam por ele no palco de um teatro municipal -, ouviu alguém dizendo não se impressionar com tais dons poéticos. Era uma voz feminina. Ora, como assim?, pensou o pretensioso Vinícius, tentando buscar com os olhos dentre todas aquelas vozes a que falara tal absurdo. Quem profere tais contrassensos?, bradava o efusivo e loquaz poeta a acotovelar-se por entre os convivas, procurando o falso testemunho. Culminou em uma rapariga, com aproximadamente 25 anos de idade, mulata como canela, com o rosto iluminado pela luz que adentrava à sala, inteiramente nua dentro de um sumário vestido verde escuro plissado nas saias e estreito dos seios à cintura, com um corpo nas medidas de uma porta-bandeira, cheia de ziriguidum até a ponta dos saltos.

Quando olhou toda aquela morena se calou de pronto. Ela, tímida, olhando envergonhada por ter pensado alto demais, deixou escapar um olhar de curiosidade a ele, que fisgara e, aos olhares mudos de todos os presentes, subitamente a pegou pela cintura com a mão esquerda, retirou do pescoço os cabelos com a mão direita, aproximou os lábios de sua orelha e disse: és a mulher mais linda que já vi até hoje na minha vida. Não tá funcionando, disse ela revirando os olhos para cima, referindo-se aos encantos que não cria. Ele, assustado e ainda não entendendo que ela falava do suposto efeito das suas frases, afastou o rosto, olhou-a nos olhos e disse: me dá teu nome! Ela deu uma risada cínica e, olhando com desdém ao poeta, disse impetuosamente: se o seu desempenho na cama for tão morno quanto sua voz e pegada, acho que esse DVD não passa de uma farsa. Lançou tais palavras no ar, virou-se e saiu, deixando exalar por entre os boquiabertos convivas seu perfume de mulata. Antes de ela sair inteira pela porta, ele ainda exclamou baixinho: apenas o nome… era tarde.


Como continuar respirando sem ter no ar o cheiro daquele pescoço. Como beijar outros lábios que não aqueles. A mulata calou o trovador, era o que todos diziam. Quem dera ele rasurar aquelas palavras, rasgar aquela página mal rabiscada. Nem seu nome ela disse ao ser interpelada pelo então poeta. Apenas se utilizou de toda sua beleza para abespinhar o literato anímico. Beleza essa que ficaria incrustada na mente de Vinícius por meses, o fazendo deixar de fazer o que fazia, de traduzir em palavras sentimentos improvisados, de encantar e ser falado. Ele, que era o tradutor da alma feminina, não tinha mais nada. Sequer tinha vontade de olhar para outras mulheres. Deu, naquela noite, seu canto do cisne.


Tornou-se um ébrio habitual. Só acordava em dias pares. Ia de bar em bar a procura daquela morena sambando em algum pagode. Bebia cerveja até cair ou ser expulso pelos donos dos botecos. Já nem falava mais, por não sentir prazer ao ouvir a própria voz, vez que apenas naqueles ouvidos as palavras fariam sentido. Queria reescrever naquelas orelhas as palavras certas, que a faria dele. Chegava em seu apartamento, acendia um cigarro, tomava um uísque e pensava na negra. De tanto tempo sem falar, esquecera até mesmo o som de sua própria voz. Sequer seus pensamentos tinham sua voz, que só pensavam com a voz dela. Aquelas palavras ecoando em seu íntimo, não vejo nada demais, não tá funcionando, se o seu desempenho na cama for tão morno quanto sua voz e pegada, acho que esse DVD não passa de uma farsa... Era o que ele tinha dela, além daqueles olhos descrentes gravados na sua retina, o calor daquele corpo impregnado em suas mãos. Tudo era ela, e nada ele tinha.

Já sucumbido ao fracasso, despido de amor próprio, esquecido por aquelas mulheres que tanto se encantaram com suas palavras, lembrava somente da que não lhe dera ouvidos, da que se fizera de surda. Ou não sentia igual às outras? Lembrou-se, então, de sua ex-noiva, que também não lhe dava bola. Seria ela da mesma forma, recatada, negligente, com um quê de pachorrenta? Seria ela tímida demais, desafeita a erotismos e poesias, insegura de si, ou muito cheia de si?

Acabrunhado com tais pensamentos, caminhando de chinelos e bermuda sob uma chuva rala que encobria de leve o sol nas areias da praia, uma cena interrompeu abruptamente seus pensamentos de voz feminina. Era ela. Morena, salgada, recém-saída do mar, arrepiada pelo súbito chuvisco que precipitava, balançando seu corpo firme, linda com um branco vestido de saída-de-praia arrastão, deixando transparecer nas lacunas aquela morenozidade toda. Suas coxas repletas de grãos de areia exaltavam tudo que havia de beleza na terra brasileira. Vinícius estremeceu e aparafusou-se na areia. Eu quero ela, pensou com voz grossa e masculina, sua própria voz, do poeta, de trovador, do Vinícius que sempre se conhecera. Recobrada a voz e os movimentos, ganhou forças para advogar sua causa, propor a ela um drink, um dancing, um pagode talvez, aprenderia a dançar se ela pedisse. Caminhou até o quiosque ao qual ela tinha se sentado, sentou-se ao seu lado, pediu uma água-de-coco, olhou para ela e disse: tu me mataste! Ela virou-se com vagar, um pouco assustada pela voz da vítima que se pronunciava, colocou a mão esquerda na própria cintura, olhou bem para o barbudo ao seu lado e disse: como é que é?

Ele então expôs suas razões, disse, desprovido de qualquer afeição que tivesse por si mesmo, tudo que lhe acontecera depois daquele encontro repentino na recepção do flat, daquelas duras palavras que ela proferiu impensadamente - ou de propósito -, do tanto de tempo que a procurava pelos bares, bebendo imoderadamente, pelas rodas de samba e pagode, a ser expulso pelos donos de boteco, a esquecer de sua própria voz em pensamento, a pensar somente com a voz dela. Disse tudo, absolutamente tudo.

O salão estava cheio, iniciou ela. Pensava, realmente, que nada do que você poderia dizer me faria pensar ao contrário do que já acreditava, que você não passava de um farsante. Mas ao me pegar pela cintura daquele jeito, cravar os dedos na minha carne, dizer que eu era dentre todas a mais linda mulher que teus olhos já viram, me exigir a graça ao pé da orelha e me olhar como se eu fosse a única mulher do mundo, percebi que estive errada. Saí do salão acreditando que você me perseguiria para tirar satisfações, mostrar que é homem, pra que então pudéssemos conversar a sós e eu pudesse lhe fazer jus às palavras. Você não veio, pensei que tinha me esquecido, que você não tinha sentido meus olhos a te chamar, ou que de fato não passavam de mentiras as suas palavras. Mulher de malandro eu não sou! Pensei que não conhecia tão bem as mulheres, apesar de saber bem como rendê-las e lhes fazer abrir as pernas. Fui forte às suas palavras, dominei minhas coxas, engoli o gozo, contive meu ímpeto, aguardei por exclusividade. Hoje você está aqui, de joelhos aos meus pés, dizendo que me procurou nos bares, nas rodas de samba e nos pagodes, fora expulso pelos donos de boteco, esqueceu-se da própria voz e sequer pensava com outra senão a minha voz. Isso tudo foi maior que qualquer poesia que o maior poeta do mundo poderia dizer ou escrever. Hoje sou a mulher mais desejada pelo poeta mais sem poesia do mundo, pelo homem mais sem dignidade do país, pelo rato mais preso à ratoeira que o dono desse quiosque já viu. Hoje eu te dou a honra de saber meu nome, agora que você não mais exige, mas suplica. Sou Tereza, gosto de flores sem datas certas, de ligações inesperadas, de elogios ao cabelo e aos vestidos. Tu é meu e eu sou tua, a partir de hoje e para sempre.

Selou-se o pacto com um beijo, porque um pacto selado por lábios nunca será descumprido.

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