- Recomendo aos leitores que não têm estômago nem começar a ler, pois é um texto pesado e forte, apesar do falso-leve do enredo.
Puerpério*
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*Puerpério: período pós-parto. |
Era quase impossível de
acreditar. Após longos anos tentando engravidar, finalmente Simone sentia os
primeiros sintomas da tão esperada gestação. Sempre foi magra, e percebia que
sua imensa vontade de ser mãe se realizara na medida em que aumentava gradativamente
com a dilatação de seu abdômen. Havia 2 meses que sua menstruação não descia. Alberto,
seu marido, logo que ficou sabendo da boa nova, tirou um empréstimo no banco
pra construir um anexo para o bebê, e com o que sobrou pegou a patroa e foi às
compras. Decidiram comprar tudo em cores neutras, pois não sabiam o sexo do
bebê ainda. Por ser cedo e a barriga de pouca ampliação, decidiram adiar o pré-natal
até poder saber o sexo do bebê. Já com o quartinho quase pronto, Simone passou
a se dedicar a aulas de tricô, enquanto Alberto baixava tutoriais e vídeos de
como ser pai de primeira viagem. Com o primeiro sapatinho de lã pronto, as
paredes pintadas e enfeitadas, e após incontáveis horas de vídeos no Youtube, o casal já se sentia pronto e à vontade com a ideia do filho.
Chegou o que Simone
acreditava ser a metade do quarto mês de gestação, pelo tempo de amenorreia. Era
hora do tão esperado pré-natal, o dia em que veriam o bebê, ouviriam as batidas
do seu coração em ritmo acelerado, suas perninhas e dedinhos, talvez até um
pintinho ou a falta dele, indicando o sexo. Alberto queria um menino, torcedor
do Avenida como ele. Por Simone tanto fazia, orava por uma criança linda e
saudável, embora torcesse em segredo que fosse menina, um pouco por ciúmes outro
tanto pelo prazer de contradizer o pai babão. Simone trajou seu macacão, ainda
um pouco folgado pela barriga das 15 semanas, pegou o marido e foi ao obstetra
para conhecer o mais novo membro da família.
Deitada sobre a maca, com um
incontrolável sorriso nos lábios, Simone sente com frio o médico passando o gel
sobre seu útero. O Doutor olhou para o ultrassom, coçou a barba desligou o
aparelho de vídeo. Percorreu por toda a barriga dela com o estetoscópio, e ela já
não aguentava de ansiosa pra escutar o coração do bebê no computador. Lacrimejando,
disse ao médico que sentia chutes nos últimos dias, sobretudo à noite, e que mal
via a hora de ele, ou ela, nascer e dar seu primeiro grito de liberdade. Desconstruindo
aos poucos aquele semblante de obstetra brincalhão, o médico diz em tom baixo,
preocupado e quase inaudível: “talvez as notícias não sejam tão boas”. Alberto,
aflito, pega no braço do médico e pergunta assustado: “o que há com meu filho,
doutor?”. “Este é o problema. Temo que não haja feto no útero de sua mulher”. “Como
assim”, pergunta Alberto assustado, enquanto Simone, incrédula, começa a chorar convulsivamente.
- “É um caso raro, se chama
pseudociese, ou gravidez psicológica”, prosseguiu o médico. “É um transtorno
emotivo, e pode acontecer quando a mulher quer muito ter um filho, ou quando
tem muito medo de engravidar. Vou pedir um exame de HCG pra confirmar, mas
acredito que a ausência de feto já me dê base pra afirmar que infelizmente não
existe bebê no seu ventre. Vou recomendar um psicólogo que sei ser muito bom
pra casos como esse”, mas, antes que ele termine de falar, Simone se veste num
pulo e sai do consultório às pressas, tendo Alberto em seu encalço. Simone
desceu correndo as escadas até dar na sarjeta do prédio, onde acocorou e chorou
baixinho, sendo abraçada logo em seguida por um Alberto ofegante.
Passaram-se quase dois meses
desde a consulta, que não voltou a acontecer, e Simone contava agora com 24
semanas de gravidez. Os enjoos aumentavam como suas mamas e seu ventre, seu humor
oscilava bastante durante o dia, passava as noites em claro. Isso deixava
Alberto cada vez mais furioso. Simone teimava em continuar o tricô, jogava pratos
no chão gritando, logo depois agarrava-se aos pelos do marido chorando, e se
jogava aos seus pés. Mas só ele aceitava que Simone levava na barriga um filho fantasma,
um feto inexistente, pois ela se recusou a acreditar no diagnóstico, não via
motivos para um tratamento psicológico, decidindo assim a levar a gestação quimérica
até o parto. Após uma briga feia, Aberto decidiu sair de casa, com a mesma roupa
que trajava, abandonando de vez a mulher pseudográvida e completamente perturbada.
Determinada, Simone ia ser mãe solteira, e nem iria registrar o bebê – que
agora mais do que nunca ela queria menina – com o sobrenome do pai covarde. Daria
o nome de Marlene à criança, nome de sua mãe, pra abespinhar o agora ex-marido,
sabendo que eles se odiavam desde sempre. Diria à filha que ela foi gerada por
fertilização in vitro, como produção
independente por sua imensa vontade de ser mãe, julgava que a filha lhe
absolveria, e se emocionava cada vez que pensava nos olhinhos dela ao mamar no
seu seio.
Contavam vinte e nove semanas
da ilusão que Simone carregava no ventre quando dores fortes tomaram conta de
todo seu corpo e uma poça de água se fez no carpete do quartinho da Marlene. “Ainda
não está na hora”, ela pensou desesperada. Foi até o banheiro pra pegar a maleta
do bebê quando um forte espasmo a jogou pra trás, derrubando-a de sua própria
altura e fazendo com que ela batesse com a cabeça na quina da banheira. Minutos
depois, ainda com a vista anuviada, Simone acorda, vê sangue na banheira, vê
sangue no vestido e percebe que não há mais tempo, a dilatação indica que a criança
está chegando. A dor abdominal é insuportável, ela desmaia por segundos algumas
vezes até erguer-se num só respiro e sentir algo descendo sobre suas pernas
molhadas. Ela agarra no ar e fecha os olhos, erguendo o bebê ainda quente em suas
mãos. Esperando ouvir o choro, ela abre lentamente os olhos e percebe que deu luz
à sua própria placenta. Uma placenta vazia, pegajosa e nojenta, que ela pega e
atira na parede com força, provocando uma explosão de líquido incolor pastoso. Num
acesso de raiva e melancolia, Simone atira sua cabeça contra o espelho do lavabo,
quebrando-o em vários pedaços. Com as mãos trêmulas, pega o celular que estava
sobre o mármore da pia e disca errante para o número de Alberto. O líquido vermelho
escorre às bicas pelo seu rosto, pingam de seus cabelos e o telefone fica
vermelho de tanto sangue.
Alberto demora
propositalmente para atender, pois não quer falar com a ex-mulher. No entanto, mesmo
não sabendo do risco de vida dela, e comovido pelo toque cuja melodia era a primeira
música que eles ouviram juntos, ele decide atendê-la. “Alô”, ele diz. É
tarde: Simone deixa cair de sua mão o celular, cata com cada mão os mais afiados fragmentos do espelho arruinado na cuba da pia, olha no reflexo sua imagem
sumindo em uma nuvem negra e numa só investida ataca os próprios pulsos. Ao chão,
ela ainda consegue dar o último suspiro de vida ouvindo no telefone: “Simone,
meu amor, você está bem?”.
- Apesar de não gostar de explicar o que eu escrevo, deixando assim a livre interpretação, digo que escrevi essa história pensando nas pessoas que ficam cegas por suas convicções, que muitas vezes recusam ajuda e afastam aqueles que as amam por uma obsessão, um objetivo inalcançável.
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