Duas horas numa fila de
supermercado. A operadora do caixa, uma loira baixinha, daquelas gorduchas
cujas roupas são menores que seu manequim, mastiga lentamente seu chiclete, com
a mesma displicência com que passa os produtos no leitor óptico. O empacotador,
que é portador de síndrome de Down, deposita as compras na sacola com extremo esmero,
como se estivesse ajeitando taças numa prateleira de cristais. A cena me comove
um pouco, a vontade que ele tem de ser útil mesmo com as limitações, comparo
meus problemas com os dele, mas faz meia hora que tem apenas dois carrinhos na
minha frente e a caixa loira gorducha continua fazendo corpo mole. O careca da
minha frente parece menos impaciente que eu, pois deve ter percorrido uns 5 quilômetros de
supermercado com a mulher, uma morena de trajes sumários que não para de falar
um minuto das duas horas em que estou atrás deles. Ao contrário dos seus
cabelos, que sacaram a chatice da tagarela e sumiram há anos, este homem deve
ser daqueles resignados por natureza, passivo, apático, pois seu semblante
lembra o de um aposentado que espera – ou deseja – a morte. O que está sendo
atendido no caixa - um senhor de cabelos grisalhos, magro e adequadamente
vestido -, se irrita com o cartão de crédito, pergunta pra filha se foi ela
quem estourou o limite, reclama da máquina que não cospe o maldito bilhete
azul, do governo que lhe cobra impostos exorbitantes nos produtos, da economia brasileira
“que vai de mal a pior”, do ar-condicionado desligado, do aquecimento global,
da vontade de mijar. Pergunto-me se comprei tudo, a massa, o molho, o absorvente
sem abas da minha mulher, os ovos de páscoa das crianças. Se não, deixo pra
outro dia, porque hoje tá difícil fazer qualquer outra coisa a não ser aguardar.
E sair da fila pra ficar mais duas horas de fila depois não é uma opção.
Exausto, deposito os braços cruzados sobre o
manete do carrinho, deito a cabeça neles e fecho os olhos, respiro bem fundo e
sinto tudo em volta sumir. A música, o locutor de ofertas, a tagarela, o
reclamão, a filha envergonhada. Aperto os olhos nos braços e começo a ver
dezenas de bolas coloridas, como se fossem rosquinhas, abrindo e fechando, um
caleidoscópio de cores com uns pontos brancos se abrindo, da mesma forma como
brincava de olhos fechados na infância. O murmurinho do mercado todo vai
sumindo, dando lugar a um sentimento inédito de paz, algo que nunca havia
sentido antes. Até que sinto um cheiro ruim que me obriga a levantar e abrir os
olhos. O cheiro vem junto com uma luz muito forte, que não sei se é porque eu
estava apertando tanto os olhos e a luminosidade do ambiente me cegou, mas me
sinto um recém-nascido que abre os olhos pela primeira vez. Na medida em que
minha visão vai voltando a distinguir as coisas, cores e formatos vejo que o
careca da minha frente e sua mulher sumiram. O cara chato do cartão, a filha
pródiga, a caixa lerda, o empacotador Down, todo mundo some, até quem estava
atrás de mim. Olho tudo ao redor, e só há um homem, vestindo terno preto,
gravata azul e cabelos negros penteado pra trás. Ele me fita encostado numa
parede há uns 10 metros
em frente ao caixa. Está fumando um cigarro, e me pergunto quem hoje em dia fuma cigarros num supermercado. Olha como se não fosse surpresa o fato de toda aquela gente
ter sumido assim. Olha como se me conhecesse, como se quisesse ter apenas a mim
ali, e eu olho pra ele como que perguntando por que só ele e eu permanecemos no
supermercado. Deve ser um segurança, e penso que viajei por horas no
caleidoscópio coloridos dos meus olhos fechados e agora o mercado tem de fechar. Me parece óbvio um segurança no final do expediente acender um cigarro esperando o último cliente inconveniente sair.
“Boa noite”, ele me saúda, olhando tão dentro
dos meus olhos que minha espinha estremece feito bambu verde. “Conheço você?”,
pergunto, agarrando forte com as mãos já suadas o manete do carrinho de
compras, que está igualmente vazio, como o supermercado a minha volta. “Vim pra
te levar pra casa”, ele responde vindo em minha direção, tão malemolente que
nem parece passar uma perna sobre a outra, anda como se flutuasse. A voz não parece vir
da boca dele também, fala dentro da minha cabeça, o som parece estar colado ao
meu ouvido. Num piscar ele já se encontra em minha frente, recostado com o
cotovelo sobre o caixa, e continua com os olhos no fundo da Minh‘alma. Pensei:
“pronto, pirei!” Em tom jocoso, posto que não cria naquela situação, pergunto
se ele é a Morte, mas a resposta dele é ainda mais audaz, com uma voz sedutora:
- “Sou o Diabo”. “Então não vou morrer?”, rebato. Deixo transparecer meu
nervosismo com a situação. Digo que não tenho tempo para piadas de mau gosto, imagino
ser um daqueles programas vespertinos de domingo, procuro as câmeras, o
apresentador, minha mulher que deve estar rindo muito de mim atrás de algum
biombo, e ele me pega pelo braço; - “Teu tempo acabou. Pra tipos com tu, a Morte
apenas não toa”. Sua mão gélida esfria meu corpo inteiro, e já me sinto morto. -
“Encarregaram-me deste fardo, carregar almas como a tua direto pro inferno”. A
vida nunca me pareceu tão boa quanto agora, que me sinto extinto. - “E qual a
razão de o próprio Lúcifer vir me buscar, que vida tão indigna da morte eu
tive?”, digo a ele, já resignado.
- A vida de ceticismo, de ateísmo niilista.
- Então o próprio Deus deveria baixar aqui,
para que eu fosse então julgado por aquele cuja existência eu duvidava e até
mesmo tentava convencer em
quem Nele cria.
- E o que sou eu, senão Deus em Sua forma
mais pura e sincera? Sou eu, dentre todas, a face Dele que ninguém espera ver
quando parte. Sou a parte mais piedosa de Deus, Sua manifestação mais cínica, a
expressão máxima da Sua vontade posta em prática.
- E por que não temo mais tua presença?
- Agora tu fazes parte de mim, e o inferno
nada mais é do que a inexistência da alma, a morte do espírito, o esquecimento
pleno, o nunca ter existido.
- Me parece o esquecimento uma boa forma de
deixar pra trás uma vida de incertezas. Passei a vida inteira acreditando que o
Diabo era mal por natureza.
- Homens que acreditam saber o que é Deus, o
que ele pensa ou diz, falam essas e outras asneiras. Não há anjo decaído, não
há alma a ser resgatada. Não existe Deus, não existe o Diabo! Senhor? Senhor? Dinheiro ou cartão, senhor?"
- Hãn?
- Dinheiro ou cartão?
- No
cartão. Crédito, por favor.
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