domingo, 20 de janeiro de 2013

A Remissão




Gilberto era filho de agricultores e tinha três anos quando seu pai, homem rude e de poucas frases, levou a família inteira para tentar a vida na cidade grande. O pai de Gilberto começou fazendo alguns biscates de pedreiro, um ou outro serviço de elétrica, eventualmente algum trabalho mais complexo. Porém, os anos se passaram, o pai de Gilberto ficou velho, e com os anos escassearam os bicos. Ainda não adaptado à vida moderna da cidade, sentindo-se fora do seu contexto, por sua decisão, acabou fazendo a família inteira passar fome e frio. No dia em que Gilberto completou oito anos, seu pai se suicidou no banheiro, usando sua velha arma enferrujada que trouxera do campo. O tiro seco, que Betinho pensou ser um rojão por seu aniversário, mudou a vida dele e de sua família pra sempre.

Embora sua história tenha sido trágica, os traços da personalidade avessa de Gilberto já eram visíveis desde sua infância no campo. Todos já notavam como ele não sentia remorso, como parecia gelado e distante. Não demonstrava sentimentos. Embora seu pai fosse um homem de poucas palavras, Betinho tinha um olhar muito mais remoto. Na época de colégio, quando era flagrado afogando pequenos animais na privada, limitava-se a expressar um sorriso no canto da boca. Tanto eram fortes os indícios da psicopatia de Gilberto que sua mãe era a única que não lhe chamava de “Betinho”, como era de se esperar uma mãe chamar um Gilberto inda criança.

Cresceu e nada de mudar. Na adolescência, criado pela cidade suburbana, cada vez mais desabrido, andava sempre com os “barras pesada”. Era o pior do bando. Fumava desde os 13, e, sempre que podia, praticava alguma maldade a outra pessoa. Roubou diversas vezes. De ricos a pobres. Furtava discos, revistas, quinquilharias de toda espécie, apenas por prazer ou pela adrenalina. Algumas vezes meteu-se a pichar muros, escrevendo seu apelido, “Manson”, alcunha essa nada distante do que realmente era a personalidade do rapaz. Alguns mendigos o conheciam pela sua truculência, violência e rebeldia. Depois que sua mãe morreu de câncer de pulmão, quando não estava preso por algum delito, dormia em albergues ou debaixo de alguma ponte fétida.

Constituiu família, depois de conseguir um ou dois empregos informais. Ébrio habitual espancava eventualmente a esposa e os filhos. Bebia cada dia mais. Estava numa estrada sem retorno para o inferno. Traições, surras, bebedeiras, xingamentos, demissões, prisões; essa era a sua rotina e de sua família. Todos sabiam que esse homem havia sido molestado pelo padrasto, depois que seu pai deu cabo da própria vida. Mas, mesmo entendendo a revolta, ninguém o suportava mais.

Num dia comum, um dos únicos que estivesse totalmente sóbrio, talvez o dia mais lúcido desde que nascera, Gilberto, andando com suas botas de couro velho pelas ruas do centro da cidade, observando tudo e todos a sua volta, percebeu uma situação estranha. Atravessou a Avenida Ipiranga e, com os olhos, acompanhou uma senhora de cadeira de rodas que atravessava contra ele. Repentinamente, tentando subir no cordão da calçada à esquerda da rua, que era muito alto, essa senhora, inclinando seu corpo para trás, virou a cadeira e caiu com o corpo quase que totalmente no meio da rua que atravessara. Ao observar isso, Gilberto virou o rosto e olhou instintivamente para o fluxo da rua, percebendo um carro se aproximava muito rapidamente em direção à mulher. Na certa esmagaria por completo seu frágil corpo. Nesse comenos, que durou quase três segundos, Gilberto correu em direção à mulher, pondo-se a frente do motorista que, logo ao perceber o que se passava, frenou decididamente, derrapou para o lado direito acertando em cheio as pernas de Gilberto, que, com o impacto, foi arremessado há 7 metros. Caiu feito pacote flácido no asfalto e rolou mais uns 3 metros.

Gilberto morreu na hora. Quebrou seu pescoço quando rolou desajeitado pelo chão, com muitas escoriações e diversas fraturas no crânio. Havia uma auréola de sangue em volta de sua cabeça. O motorista conseguiu parar o carro logo depois do choque, antes de causar maiores danos à incolumidade do público que, naquele momento, quedava-se inerte e silente, como se o tempo tivesse parado naquele átimo. A mulher, com a ajuda de outros transeuntes, sentou-se em sua cadeira, após ter assistido deitada a toda aquela cena hollywoodiana. Olhou para aquele corpo estendido e saiu, retornando a seu destino, até então interrompido pelo tombo.

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