Rockonha
Por Rafael Rivas
A visão vai clareando, e Jeremias já pode ver o sorveteiro,
os repórteres e os agentes de TV que o filmavam. A adrenalina foi lentamente se
neutralizando pela respiração fria do traficante. Jeremias sente cheiro de pólvora
e escuta uma risada. Olha para suas mãos, entretanto, sua arma não foi
disparada. E à sua frente pode ver o destemido homem a quem chamam de Santo
Cristo deitado de bruços no asfalto. E se lembrou de quando era uma criança, e
de tudo que vivera até estar ali, em frente ao lote 14, na Ceilândia.
De menino bem criado por família de classe-média à
adolescente rebelde e arredio. A vida de Jeremias, um brasiliense caucasiano
filho de diplomatas, passou a acontecer quando ele fugiu de casa, indo morar
com colegas de faculdade em uma república da UNB. Cursava biologia, mas odiava
o curso.
Por ser bem relacionado, andava com os boyzinhos da cidade, praticando
pequenos delitos. Só que Jeremias era esperto, sabia que para bancar aluguel,
festas e o uso de drogas deveria começar traficar para os amigos. E as festas
foram aumentando, o tráfico se profissionalizando, e a “Rockonha”, apesar da
repressão militar e da polícia, fazendo sucesso.
Até que um dia apareceu um contrabandista baiano, chamado João
de Santo Cristo, que prometia acabar com o tráfico na cidade, junto com Pablo, um
peruano que morava na Bolívia. Ele costumava frequentar a Asa Norte, e ainda não
se bandeava para a Asa Sul, onde Jeremias dominava. Agora Jeremias já não era o
único traficante de renome de Brasília.
Nas festas de rock, João passou a aliciar consumidores,
inclusive amigos de Jeremias, e logo já fazia parte de um pequeno bando que
roubava. Amador que era, o tal de Santo Cristo caiu no primeiro roubo, e
prometeu pegar todos os amigos de Jeremias, que, por serem filhinhos de papai, não
foram presos. Santo Cristo, preto e pobre, ficou anos preso. E lá fez sua
graduação no crime.
Recluso juntamente com presos políticos, Santo Cristo virou
bandido destemido e temido no Distrito Federal. Diziam que não tinha nenhum
medo de polícia, capitão, traficante, playboy ou general.
“Você perdeu sua vida, meu irmão! Você perdeu sua vida, meu irmão!”.
Jeremias não entendia as ameaças e as conseqüências da proposta indecorosa que
recusara. Não iria matar João a pedido de um general, só porque o baiano namorava
sua filha. Jeremias estava em Planaltina quando Pablo lhe disse que João de
Santo Cristo soubera da proposta do general, e queria conversar de perto. Chegou
a hora do enfrentamento inevitável.
Jeremias organizou uma Rockonha e fez todo mundo dançar, a espera
do encontro com João. “Jeremias, maconheiro sem-vergonha, tua acha que é crente
mas não sabe nem rezar”. João, o ladrão de velhinhas carolas, era mais preto que
ele pensava. Como poderia comer todas as menininhas de sua cidade? Santo Cristo
lhe chamou pra briga, só que Jeremias viu a Winchester-22 e fugiu, desarmado. Logo
depois saiu no noticiário que Santo Cristo fora preso novamente.
O tempo passa e um dia Jeremias conhece uma tão menina linda
numa Rockonha, e de todos seus pecados ele se arrependeu. Ela era filha de um general
perigoso, que acabara com a vida do último namorado dela. Contudo, Jeremias sempre
gostou de perigo, e prometeu eternamente seu coração a Maria Lúcia, casou-se
com ela e um filho nela ele fez.
A criança já estava grande quando bate em sua porta Pablo, o primo
peruano de João, dizendo que o faroeste caboclo fugira da cadeia, era só ódio
por dentro e lhe chamava a um duelo. “Você pode escolher suas armas que ele
acaba com você, seu porco traidor. E mata também Maria Lúcia, aquela menina
falsa para quem João jurou eterno amor. Amanhã, às duas horas, na Ceilândia, em
frente ao lote 14, é lá que ele vai estar!”.
E Jeremias não sabia o que fazer quando viu o repórter da
televisão, dando notícia do duelo na TV, dizendo a hora o local e a razão. Ao ver
o boletim, Maria Lúcia correu para casa para explicar a Jeremias o que havia
acontecido: seu pai, o general perigoso, havia prometido acabar com seu
namorado, João de Santo Cristo, porque era caboclo, pobre e contrabandista. Revoltado,
depois que foi preso por culpa do general, João rebelou-se contra ela e aos
gritos mandou-a afastar-se dele, impondo-lhe a culpa da segunda prisão.
Ao sábado, dia do duelo, Jeremias pegou sua arma por
precaução e foi até o lote 14 da Ceilândia para explicar que nada tinha contra
João, que tudo não passava de um mal entendido. Apesar de traficante, Jeremias não
passava de um boyzinho sem muita coragem. Chegando lá, ultrapassou a multidão, ouviu
um tiro seco, uma risada e o povo aplaudindo, em seguida. O sol cegou seus olhos,
mas visão vai clareando, e ele já podia ver o sorveteiro, os repórteres e os
agentes de TV que filmavam tudo ali. A adrenalina foi lentamente neutralizada pela
respiração fria do traficante. Jeremias sentiu cheiro de pólvora, olhou para
suas mãos. Entretanto, não disparou com sua arma. João estava deitado de bruços,
ensanguentado, e Maria Lúcia correu em sua direção, com a Winchester-22 nas mãos, ajudando-o a se levantar.
“Jeremias eu sô hômi, coisa que você não é, e não atiro
pelas costas não. Olha pra cá filha da puta sem-vergonha, dá uma olhada no meu
sangue e vem sentir o teu perdão”. E Santo, Cristo com a Winchester-22, deu
cinco tiros em safado traidor, que correu revidando os tiros.
Na troca de balas, Jeremias, Santo Cristo e Maria Lúcia
foram atingidos; os três morreram baleados no coração.
Por ter matado um traficante de renome, o povo declarou
que João de Santo Cristo era santo porque sabia morrer. E a alta burguesia da
cidade não acreditou na história que eles viram na TV. E Jeremias não conseguiu
o que queria quando veio pro duelo com João ter. Ele queria era falar pra Santo
Cristo que Pablo é quem queria lhe fazer... sofrer.
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