Quando alguém procura à justiça para dirimir uma lide, isso tem um preço. São gastos do Judiciário que são pagos pelo autor no momento da distribuição do processo e pelo perdedor do processo, após o término da causa. Para ajuizar uma ação, é preciso pagar um valor inicial. Por isso, pessoas sem dinheiro, pobre na acepção jurídica e real da palavra, pedem AJG, que significa Assistência Judiciária Gratuita. Sob a guarida da AJG, tanto a pessoa que busca a justiça, quanto àquela que perde a ação, podem se isentar de pagar as custas processuais. Basta pedir AJG na inicial ou na contestação (ou a qualquer momento do processo).
Acontece que alguns juízes não entendem ser assim tão simples “pedir e receber”. Alguns desses juízes, ainda mais duros pela grossa camada de burocracia cerebral e excesso de formalismo, acabam por indeferir o AJG para todos que não comprovarem documentalmente sua pobreza.
E foi justamente o que aconteceu num caso em Marília, em São Paulo. Um menino, filho de um marceneiro que morreu em um acidente de trânsito, que pedia indenização de um salário mínimo, mais danos morais pela perda do pai contra o motoqueiro que lhe matou, teve negado o seu pedido de AJG porque não provou sua condição de pobreza, ainda mais por que escolheu um Advogado particular para defendê-lo.
Pedindo reforma da decisão, o Advogado entrou com um agravo de instrumento, que é um recurso que busca retificar uma decisão interlocutória no decorrer do processo, buscando o deferimento da AJG para o menino.
Foi então que, distribuído por sorteio, o recurso cai nas mãos do Desembargador José Luiz Palma Bisson, do TJSP.
No seu voto vemos a classe e sensibilidade desse Desembargador ao tratar da condição do menino, não se limitando apenas a prover ou desprover o recurso. Como me tocou muito esse voto, emotiva e processualmente, me senti na obrigação de compartilhar isso.
Segue a decisão in verbis, a qual eu acompanho o relator:
“É o relatório. Que sorte a sua, menino, depois do azar de perder o pai e ter sido vitimado por um filho de coração duro - ou sem ele -, com o indeferimento da gratuidade que você perseguia. Um dedo de sorte apenas, é verdade, mas de sorte rara, que a loteria do distribuidor, perversa por natureza, não costuma proporcionar. Fez caber a mim, com efeito, filho de marceneiro como você, a missão de reavaliar a sua fortuna.
Aquela para mim maior, aliás, pelo meu pai - por Deus ainda vivente e trabalhador - legada, olha-me agora. É uma plaina manual feita por ele em pau-brasil, e que, aparentemente enfeitando o meu gabinete de trabalho, a rigor diuturnamente avisa quem sou, de onde vim e com que cuidado extremo, cuidado de artesão marceneiro, devo tratar as pessoas que me vêm a julgamento disfarçados de autos processuais, tantos são os que nestes veem apenas papel repetido. É uma plaina que faz lembrar, sobretudo, meus caros dias de menino, em que trabalhei com meu pai e tantos outros marceneiros como ele, derretendo cola coqueiro - que nem existe mais - num velho fogão a gravetos que nunca faltavam na oficina de marcenaria em que cresci; fogão cheiroso da queima da madeira e do pão com manteiga, ali tostado no paralelo da faina menina.
Desde esses dias, que você menino desafortunadamente não terá, eu hauri a certeza de que os marceneiros não são ricos não, de dinheiro ao menos. São os marceneiros nesta terra até hoje, menino saiba, como aquele José, pai do menino Deus, que até o julgador singular deveria saber quem é.
O seu pai, menino, desses marceneiros era. Foi atropelado na volta a pé do trabalho, o que, nesses dias em que qualquer um é motorizado, já é sinal de pobreza bastante. E se tornava para descansar em casa posta no Conjunto Habitacional Monte Castelo, no castelo somente em nome habitava, sinal de pobreza exuberante.
Claro como a luz, igualmente, é o fato de que você, menino, no pedir pensão de apenas um salário mínimo, pede não mais que para comer. Logo, para quem quer e consegue ver nas aplainadas entrelinhas da sua vida, o que você nela tem de sobra, menino, é a fome não saciada dos pobres.
Por conseguinte um deles é, e não deixa de sê-lo, saiba mais uma vez, nem por estar contando com defensor particular. O ser filho de marceneiro me ensinou inclusive a não ver nesse detalhe um sinal de riqueza do cliente; antes e ao revés a nele divisar um gesto de pureza do causídico. Tantas, deveras, foram as causas pobres que patrocinei quando advogava, em troca quase sempre de nada, ou, em certa feita, como me lembro com a boca cheia d'água, de um prato de alvas balas de coco, verba honorária em riqueza jamais superada pelo lúdico e inesquecível prazer que me proporcionou.
Ademais, onde está escrito que pobre que se preza deve procurar somente os advogados dos pobres para defendê-lo? Quiçá no livro grosso dos preconceitos...
Enfim, menino, tudo isso é para dizer que você merece sim a gratuidade, em razão da pobreza que, no seu caso, grita a plenos pulmões para quem quer e consegue ouvir.
Fica este seu agravo de instrumento então provido; mantida fica, agora com ares de definitiva, a antecipação da tutela recursal.
É como marceneiro voto.
PALMA BISSON - Relator Sorteado”.